terça-feira, julho 29
Esta noite tive um daqueles sonhos bizarros em que passado e futuro se misturam sem nenhuma coerência nem consistência mas que me deixou a cismar com uma história que se passou aqui há uns anos quando eu por incúria ou idiotice me deixei envolver com uma mulher “casada”. Eu sempre disse e continuo a dizer que não é correcto investir nesse tipo de relacionamentos até porque há vários cenários possíveis e nenhum deles interessa a todas as partes envolvidas, pelo menos não na actualidade social deste cantinho soalheiro onde vivemos. Isto trocado por miúdos significa que olhar é normal porque ninguém é cego e o que é belo é para ser apreciado, pois claro! Mas daí a dar o passo e entrar numa intimidade que não é nossa em exclusivo, isso já requer uma mestria emocional que a mim me ultrapassa. Sou da velha escola e acredito na exclusividade das relações até porque não acredito na capacidade dos seres humanos em gerirem uma proliferação de afectos para além desse único e especial que nos liga à pessoa da nossa vida, pelo menos no momento presente.
Bom mas da única vez em que cometi o erro de meter a colher entre mulher e mulher apanhei um susto tão grande que jurei para nunca mais! É certo que a mulher da mulher não era uma mulher qualquer. E é certo que eu trazia uma paixão assolapada por ela já desde os tempos de liceu. E é certo também que eu por vezes achava que a Lucinda me dava troco, fosse por certos olhares mais intensos, fosse por uma mão propositadamente deixada sobre o meu braço queimando-me a pele e deixando-me à beira do desespero. E ela era uma mulher muito bonita, de pele espontânea e clara e de olhos translúcidos e directos, e eu já aqui confessei que não sou insensível à beleza magnética de certas mulheres.
Mas a Lucinda tinha uma prometida, sempre teve desde que nos tornámos gente. A Ana Isabel era uma espécie de sombra, onde estava a Lucinda ela aparecia atrás, sempre vigilante, sempre protegendo a eleita do seu coração. Não era possível dissociar uma da outra, de tal forma se moviam juntas para todo o lado. Já na altura era uma escandaleira lá na terra porque elas sempre se declararam namoradas e não queriam saber das conversas de pais, padres e psicólogos que lhes diziam que não era possível terem tanta certeza da sua sexualidade sendo tão novas. Chegavam a pedir-lhes que experimentassem com fulano e sicrano, garanhões de serviço, antes de se comprometerem dessa forma tão explícita! Como se a experimentação de um prazer não desejado pudesse de alguma forma mudar o que não pode nunca ser mudado! Quanto mais insistiam para que se separassem mais elas insistiam que nunca jamais em tempo algum nenhum ser vivo se intrometeria na sua irmandade de sexo e de sangue.
Então porque foi que um dia a Lucinda apareceu sozinha na oficina da Ana Maria pedindo para falar comigo como se a sua vida dependesse disso? Então porque foi que a Ana Maria achou por bem encontrar um ponto de encontro secreto onde Lucinda e eu pudéssemos aprofundar laços que eu unilateralmente já lhe lançara? Então porque foi que eu sabendo que a Lucinda não me pertencia fui ao seu encontro de braços e coração abertos, querendo saber porque era que ela me queria, como era que ela me queria e porque não antes, antes do “casamento”, antes desse tempo todo em que eu tinha tentado enterrá-la nos baús das memórias do meu passado? Não sei. Apenas sei que fui querendo apertá-la nos meus braços e dizer-lhe que eu sempre a tinha amado e desejado muito, apesar da outra.
Lucinda estava triste, um pouco cabisbaixa e apática, como se tivesse chegado a um beco sem saída. A sua vida não era aquilo que ela queria, disse-me. Algures no tempo tinha deixado de governar as rédeas da sua vontade e tinha cedido o seu lugar a uma outra cavaleira, mais destemida e assertiva do que ela. Durante anos cedeu a tudo, deixou-se levar por uma existência confortável e desafogada. Até ao dia em que se olhou ao espelho e não se reconheceu naquele ser de aparência indiferente e desleixada. A vida deixou de ser vida, passou a ser uma sucessão de dias, minutos, todos iguais uns aos outros, todos cinzentos, indistinguíveis, frustrantes, sufocantes minutos em que nem força sentia para se debater contra algo que se tinha apoderado daquilo que ela era deixando-a feito esqueleto de si própria.
A minha Lucinda que não era minha excepto nesse brevíssimo momento em que se agarrou a mim e me pediu que a salvasse duma vida que não era vida. Vamos, pedia-me, fugimos as duas, passamos a fronteira, vamos viver bem longe desta terra e desta gente, e dela... da outra que a queria sem a querer deixar ser aquilo que ela era. E eu por um momento sensível ao seu desespero dizia-lhe que por mim sim, fugíamos pois, nós sem dinheiro mas qualquer coisa se arranjaria nem que eu tivesse que me ir oferecer à beira da estrada aos indigentes que por ali passavam desejosos duma foda apressada. Ela chorava agarrada a mim e nesse momento os nossos lábios tocaram-se e sofregamente nos beijámos. E eu senti que a amava, intensamente, terrivelmente, desesperadamente iria tentar fazer o impossível para me juntar aquela Lucinda que não era minha.
Combinámos encontrarmo-nos todos os dias dessa semana, e todos os dias fazíamos planos, traçávamos caminhos de fuga para amanhã, ou depois, ou seguramente um dia muito próximo do seguinte. E amávamo-nos loucamente, com uma intensidade que nunca tinha sentido até então no meio de juras desse amor eterno que esperava por nós um dia, bem longe de tudo e de todos. Os dias passaram, a loucura manteve-se durante todo o verão até que um dia... ninguém sabe como, ninguém sabia, ninguém vira, ninguém comentara, mas um dia a Ana Isabel apanhou-nos juntas. Ainda me lembro da sua cara transtornada, das veias do pescoço a pulsarem furiosamente à medida que ela arrancava Lucinda dos meus braços e depois me empurrou num vértice de violência desmesurada, pontapeando-me e esmurrando-me, querendo apagar de mim memórias que eram só suas, da sua intimidade de casal onde eu nunca pertencera e de onde era agora selvaticamente expulsa.
Senti o sangue a jorrar-me nariz e boca adentro, o seu gosto acre a contrastar com o sabor doce dos beijos da Lucinda que nesse dia morreu para o mundo e para mim. Apanhei uma carga de pancada tão grande que julguei que nunca mais me levantava. E nesses momentos em que estive entre a vida e a morte sufocando no meu próprio sangue que me inundava as entranhas, jurei que tinha sido a primeira e última vez. Foi a Ana Maria que me salvou, me encontrou naquele estado e me levou para as urgências para que me cozessem rasgões e concertassem fracturas. A ela devo-lhe a vida e à minha avó a clarividência de espírito com que tentou confortar-me na primeira visita que recebi no hospital. Depois de avaliar os estragos nos meus membros inferiores a minha querida avó virou-se para mim a sorrir e disse-me "na difícil arte de amar mais vale perneta que maneta minha filha, nunca te esqueças disso, mais vale perneta que maneta!"
13 comentários:
boa tarde!
excelente!!!
quem brinca com o fogo....
quem "bebeu" a vida sabe bem o que diz e a tua avó até teve bem. ;-)
Vou fugir de todas as Lucinda.E das Ana Isabel também.
como te percebo! encontrei uma lucinda na minha vida! adorei o post!
Todas nos ja encontramos algumas "lucindas" nas nossas vidas...a ultima que encontrei fez me perder o amor da minha vida de 8 anos...mas melhores dias virao!!e so cai quem quer ou quem esta disponivel para...tenham cuidado com as "quedas"!Parabens pelo post...e muito instrutivo !bj.sweet shark
Deste texto não me ressalta tanto a ideia da senhora ser 'casada', mas sim a sapiência de uma avó.
Escreve mais. Escreve muito porque já tive oportunidade de te ler em post anteriores e escreves deliciosamente bem.*
De facto, quando significante e significado fluem e confluem...o prazer da leitura é ... ;) parabéns!!
Amei a ironia do final, delicioso o texto - como sempre.
Bem, que experiência... Confesso que me ri um pouco no fim com a frase sábia da tua avó! ;D Bom post! ;)
Mais uma vez parabéns pelo excelente texto...! :-)As "Lucindas" que subitamente se cruzam nas nossas vidas fazem-nos mtas vezes perder coisas boas do presente, que podem não mais ser recuperadas... Cuidado com as "Lucindas" d mundo...
Ah, a sabedoria das avós...
Às vezes passo por aqui e sempre me surpreendo e me encanto com as coisas que escreves.
Que história, hein?! Eu também sou assim, "à moda antiga"... Uma mulher "casada" jamais será nossa de verdade... Porque tudo será sempre às escondidas, e também corremos o risco de acontecer o que se passou contigo. Imagino o estado que deves ter ficado, depois de teres traçado todos os sonhos e planos...
A sabedoria das avós... É muito bom poder contar com o consolo delas nesses momentos!!
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