Salomé - a encantadora de serpentes - parte II

sexta-feira, novembro 21

Claro que eu quis saber quem ela era e o que fazia às mulheres para as deixar assim! Numa escala infinitamente mais pequena também eu procurava algo em todas as mulheres que seduzia. Houve tempos em que também eu todas as noites me abandonava na doçura de corpos quentes e sempre diferentes. Salomé intrigava-me e fascinava-me. E quanto mais ouvia falar da sua mestria como amante de mulheres, mais curiosidade tinha em ir procurá-la talvez numa vã tentativa de a decifrar.

No dia em que finalmente nos encontrámos, no dia em que eu larguei tudo para ir ao seu encontro, eu soube porque Salomé fascinava todos aqueles que com ela se cruzavam. Salomé lia-nos a alma, trespassava-nos com o seu olhar directo e penetrante. Era impossível mentir-lhe, era desconcertante sentir que as palavras das nossas histórias se desmoronavam como castelos de cartas, cartas essas que ela depois escolhia a dedo, seleccionando as que eram verídicas das que não passavam de floreados cuidadosamente escolhidos para impressionar os outros. Foi a primeira, e única, mulher, a quem consegui ver a aura. Talvez eu não seja um ser demasiado espiritual, Salomé dizia-me que a minha aura variava entre o vermelho e o laranja, que supostamente são auras muito físicas. A dela variava de cor. Havia dias em que se passeava por todas as cores do arco-íris, e era impressionante vê-la no centro de tanta cor e luz. Dizia-me que comandava a sua aura, que a usava da maneira que melhor entendia, que se camuflava por trás de certas cores quando queria passar invisível e que usava outras para se valorizar quando queria que todos parassem para a olhar.

Comigo é quase certo que se valorizava, eu via-lhe, sentia-lhe o gozo nascente com que de repente aparecia a brilhar à minha frente. Eu ficava de boca aberta e queixo caído e ela ria-se do meu espanto pueril. Depois pegava-me nas mãos e lia-me o destino, dizia-me que eu seria fisicamente estéril mas que da minha mente brotariam muitas e muitas histórias, tantas que uma só vida não chegaria para as contar todas. Havia dias sombrios, dias em que Salomé se fechava para o mundo, envolvendo-se de negro e escondendo-se no mais profundo do seu ser. Depois desabrochava, vinha ter comigo e acariciava-me, pedia-me para lhe contar uma das minhas histórias inconsequentes e eu fazia-lhe a vontade. Tenho saudades das suas carícias experientes, as suas mãos de fada envolviam-me de tal forma como se estivessem a criar um casulo tão meu, tão primário, tão seguro que era como se de repente estivéssemos dentro do útero materno.

E fomos amantes sim, Salomé percebeu logo que eu era amante de mulheres, tal como ela. Também por isso, talvez por isso, ela me acolheu junto de si como se fosse alguém de família. Para além de ser amante de mulheres, nunca nenhum homem tinha tocado em mim, nunca nenhum tinha penetrado a minha intimidade que só algumas mulheres tinham conseguido apenas beliscar. Agradava-lhe o meu feminismo primário baseado na minha arrogante indiferença em relação ao sexo masculino. Não seria uma fêmea poderosa como ela, mas tinha as minhas aspirações e ambições. Era, talvez ainda seja, uma mulher muito criativa e isso no momento servia-me para seduzir mulheres belas que comigo se cruzavam.

Uma noite, antes de nos tornarmos amantes, foi-me dada a ver uma visão que nunca mais esqueci. Foi nessa noite que percebi que Salomé tinha poderes muito para além de qualquer outro ser humano. Estávamos numa lua nova de verão, e o tempo esfriou abaixo do que era costume para a altura do ano. As pessoas assustaram-se, pediam a Salomé que lhes visse a sua sina, que lhes garantisse que não vinha lá o fim do mundo. A mim incomodava-me a facilidade com que as gentes da aldeia se assustavam com meras mudanças do tempo. Não teriam mais em que pensar, coitados. Mas Salomé não lhes ficou indiferente e nessa noite isolou-se para tentar obter uma resposta.

Contrariamente ao habitual, eu segui-a através das matas e das florestas, até chegarmos a um grande lago, muito escuro e negro, tão diferente dos cursos de água transparentes e cristalinos onde estava habituada a banhar-me. A noite estava tão espessa que só conseguia ver Salomé, irradiando uma luz dourada, como se fosse uma pequena candeia avançando tranquila e segura pelo breu adentro. Ajoelhou-se à borda do lago e sussurrou algo num linguajar sibilante ao qual responderam umas dezenas de serpentes que surgiram por debaixo daquele tapete lago espesso e escuro. Salomé falava com as serpentes! E logo começou a gesticular e a contorcer-se no meio delas num misto de transe e dança impossível de descrever! Era assim que se tornava una com a natureza! Era assim que interpretava os seus sinais, reconhecia-lhe os modos, adivinhava-lhe o destino! Não entendi nada do que ali foi mutuamente transmitido nessa noite, excepto um brevíssimo "não temas!" talvez mais direccionado a mim do que a ela.

Não falámos sobre o que se tinha passado, mas ela sabia que eu a tinha seguido e tinha presenciado o seu encantamento com as serpentes. Possivelmente até teria sido ela que me tinha instado a segui-la, como uma forma de teste às minhas fronteiras psíquicas. O que quer que fosse eu tinha superado a prova e como recompensa Salomé passou a tratar-me duma forma extremamente terna e carinhosa. Dia após dia aproximava-se cada vez mais de mim, cada olhar ia penetrando mais fundo, como se estivesse empenhada em potenciar aos poucos uma loucura difícil de controlar. Nesses dias a sua aura brilhava como nunca, definitivamente dourada, o que a fazia parecer uma deusa no meio dum sol resplandecente. E o ouro que nela via parecia escorrer para cima de mim, deixando marcas e caminhos no meu corpo que ferviam cada vez mais. Era como se me estivesse lentamente a envenenar.

Aos poucos eu deixei de pensar, de ver, de falar em nada que não fosse relacionado com Salomé. Estava de tal forma enfatuada que um dia não aguentando mais fui procurá-la. Ela já estava à minha espera, nua, deitada num belo leito de marfim coberto de finas sedas das mais variadas cores. Vê-la assim, oferecendo-se daquela forma a mim, foi um choque tremendo, que quebrou muitas barreiras, muitas algemas, muitas mordaças e me deixou de tal forma leve que penso que levitei até ao seu lado. O seu corpo estava tão quente, a ponto de ser quase insuportável tocar-lhe! Ela agarrou nas minhas mãos e entrelaçando os seus dedos nos meus beijou-me na testa, nos olhos, no nariz, no queixo e finalmente na boca. Foi aí que senti o meu corpo a aquecer, como se ela estivesse a transferir-me o seu calor, o seu saber, uma parte de si. Aquele nosso enlace parecia-me mais uma iniciação do que um mero ritual de cariz sexual. Os seus beijos tinham lugar marcado, o meu corpo não lhe era estranho e ela aparentava conhecê-lo melhor do que eu própria! Apoderou-se de mim e eu deixei-a entrar, deixei-a saborear-me, provar-me, explorar-me, sorver-me. Ao contrário do que normalmente acontecia não me sentia a esvaziar-me, pelo contrário, a paixão e o desejo iam aumentando, mesmo depois de me ter proporcionado uma série de orgasmos que me iam catapultando para novos e desconhecidos patamares de prazer sexual!

Não sei quanto tempo nos amámos, o tempo parou para mim e durante muito tempo não consegui sequer vislumbrar o que se passou dentro desse casulo temporal que ela teceu à minha volta. Não me podia impedir de sorrir cada vez que me lembrava de Salomé, mas a memória concedia-me pouco mais do que uma vaga sensação de bem-estar. Ainda hoje... é com grande dificuldade que pesco os bocados que ainda me faltam para entender o que correu mal na nossa história.

Acho que ela procurava uma nova Isilda em mim, ou talvez pensasse que a matéria prima era suficientemente moldável para criar algo novo e ainda melhor. Eu sei que mudei em todos os meses que convivi com Salomé. Sei que larguei partes de mim que nunca mais recuperei. E também sei que Salomé se dedicou a tentar fazer de mim a sua maior obra. Cuidadosamente, como outrora a sua mãe tinha feito com ela, arrancou espinhas e espinhos, alisou amolgadelas, lambeu feridas e poliu-me até à exaustão!

Apesar de tudo eu nunca consegui atingir o nirvana espiritual que ela previa para mim. Por mais noites que passasse agarrada ao seu peito, sentindo-a ofegante sobre mim, dentro de mim, não deixava de temer por um fim que eu antevia próximo. Aquela vida de cativa incomodava-me e aumentava uma certa ansiedade que Salomé tentava em vão dispersar. Talvez por sentir que eu me afastava em vez de me aproximar Salomé decidiu recorrer ao seu último reduto, sem saber, ou sabendo mas não querendo ver, que assim acabaria de vez com a nossa história.

Há sempre um momento na vida de todos os amantes fusionais em que um, ou ambos, chegam a uma encruzilhada no caminho comum. E nesse momento ambos têm que querer seguir para o mesmo lado com a mesma vontade e intensidade. Se tal não ocorrer isso representa sempre a morte anunciada da sua relação. O elo mais fraco, caso o haja, pode até ceder e seguir o outro, mas a parte de si que ficou lá atrás não segue com ele e um dia o outro perceberá que o que tem ao seu lado é apenas uma sombra daquilo que um dia teve. Ainda assim há quem tente métodos menos convencionais para convencer a sua amante a seguir o caminho mais longo e mais difícil. Ter usado as serpentes é algo que nunca perdoarei a Salomé, porque tornou a minha luta interior desigual e porque não levou em conta o meu asco aos animais que tanta ligação tinham consigo.

A história dessa noite fatídica não me vem regular e como tal não é fácil descrever com precisão aquilo que se passou. Sei que sentia um calor brutal em mim, mas também não sei se parte dele se devia a tudo o que Salomé já me tinha dito e feito até então. Seria inevitavelmente uma noite de paixão brutal, como outras que já se tinham passado entre nós. Os olhos pretos de Salomé roçavam o vermelho e queimavam os meus à medida que ela se aproximava de mim. Mantendo os olhos fechados com medo que ela me cegasse de vez, entreguei-me ao desejo e à vontade animalesca de me sentir presa de tão sublime predadora. Acariciou-me longamente à medida que me embalava com os seus estranhos e poderosos encantamentos. À medida que me ia sentindo cada vez mais leve e quente não pude deixar de sentir um ligeiro arrepio na perna que me levou a abrir os olhos. E o que vi... uma das suas serpentes, a maior delas todas, dirigia-se a uma velocidade estonteante na direcção do meu sexo molhado e convidativo! Era ali o fim do caminho, a parede feita de grossos tijolos do betão mais duro! Nunca deixaria uma serpente penetrar-me, por muito encantada que estivesse! Com uma destreza que não me julgaria capaz em tais circunstâncias e vencendo o nojo que tinha a tais criaturas, peguei na cabeça da serpente e localizando uma das muitas velas acesas que Salomé mantinha no seu quarto, queimei-lhe a língua! Assim, num só movimento incapacitei-a de jamais voltar a provar um sexo doce e delicado de qualquer outra mulher!

Inesperadamente Salomé desatou a urrar duma forma demoníaca, como se tivesse sido possuída pelo espírito da serpente que jazia moribunda a seus pés. Nesse momento tive medo de morrer envenenada. Tive medo que num acto de vingança fatal Salomé atiçasse o resto das suas serpentes contra mim. Mas naqueles segundos de desespero puro que certamente lhe trouxeram à memória a morte de Isilda e aproveitando que se encontrava ajoelhada tentando reanimar a sua serpente, parti dali para nunca mais voltar!

Demorei muito tempo a recuperar deste episódio insólito e ainda hoje não sei se estarei totalmente curada. Há noites em que ainda sinto um calor estranho em mim, em que os meus sonhos se transformam em pesadelos e só consigo acalmar quando ouço uma voz que me diz "não temas!" e talvez nesses momentos algures no mundo Salomé esteja a velar sobre mim, fazendo-me chegar o seu perdão pelo mal que lhe causei.

E é com alívio que termino esta missiva que se tornou muito mais longa do que eu previra. São assim as memórias, confundem-nos muito, desorganizam-nos e intrometem-se por demais nos humildes fiozitos de pensamento que tentamos manter claros e bem definidos.

5 comentários:

Alice disse...

Adorei a história, surreal e criativa demais.

Miranda disse...

Obrigada! :) Nem sempre é fácil ao início conseguir chegar ao fim duma forma mais ou menos perceptível! :P Uma coisa é aquilo que se imagina e outra (por vezes totalmente diferente) aquilo que sai por escrito!!

Anónimo disse...

Ola venho aqui em seu espaço pra te informar que vc é destaque no portal das lindas, pois boa literatura e criatividade tenque ser reconhecida espero que curta beijos

http://portaldaslindas.ning.com

beijos

Anónimo disse...

adorei ler-te. adorei.

Maria Garcia disse...

cativante e sonhador este texto...