A história de Ana e de Joana

quinta-feira, junho 25



Hoje não me deixaste dormir Joana. De cada vez que fechava os olhos via os teus olhos de anjo, a tua cara sofrida traçada por socalcos de desconsolo e incompreensão. Sempre te levantaste contra as injustiças do mundo, sempre pensaste mais nos outros do que em ti e hoje presto-te singela homenagem querida Joana. Porque este mundo ainda não está preparado para as diferenças intrínsecas que existem dentro de cada um de nós.


A mãe de Joana fechou os olhos logo após a exclamação da enfermeira "é um menino!" e nunca mais os abriu. Durante toda a gravidez tinha sonhado com a sua menina semente que sentia crescer pujante dentro da sua barriga. Muitos anos depois da sua morte pós-parto ainda se comentava que tinha sido o desgosto daquela troca de género que a tinha matado, ou talvez até o desgosto que tinha sentido por pressentir que aquela sua filha nunca poderia vir a ter uma vida fácil e despreocupada. O facto é que Joana se sentia culpada pela morte da mãe que não conhecera. Tudo na vida dela emanava desse “engano” primordial cometido sabe-se lá por quem nem porquê. Tal como sua mãe, Joana estava convencida que deveria ter nascido menina e achou que um pequeníssimo adereço a mais entre as suas pernas não deveria ter a mínima influência naquilo que era a sua essência verdadeira.

A somar à morte da mãe, o pai abandonou-a por achar que aquele filho frágil e doente não iria sobreviver aos anos da infância e entregou-a aos cuidados da avó, que se encarregou de providenciar a educação que sentia necessária à neta, fosse ela menino ou menina. Se Joana sobreviveu foi graças a essa avó, que de tudo fez para que ela se mantivesse à tona num mundo lamaçal pestilento de agressividade e egoísmo.

Na escola Joana brincava com as meninas e andava sempre com elas excepto nos momentos em que precisavam de usar a casa de banho. Havia sempre um adulto que se lhe punha no caminho e lhe dizia "Então?? Aí é a casa de banho das meninas, tu não podes entrar aí, tu tens pilinha!" E lá se lembrava que aquele minúsculo adereço lhe impunha rigorosas regras de segregação que todo o resto do seu ser não compreendia.

Na aldeia e na escola habituaram-se a chamá-la de Ju, já que ela não respondia quando a tratavam pelo nome de baptismo. João ou Joana, tantas diferenças contidas, escondidas em tão poucas letrinhas. E um preço tão alto a pagar por querer um "n" ali antes do "a" no final. Joana nunca quis o papel de vítima, mas era diferente para todos os que a víamos sempre esmurrada, negra de cotoveladas e pontapés que os miúdos e algumas miúdas se esmeravam em lhe dar. "Que se passa Ju? Fizeram-te mal?" perguntei-lhe muitas vezes. E ela respondia "nada vizinha, não é nada, isto passa!"

Ana era uma das poucas meninas que brincavam com Joana. Para Ana não havia dúvidas, Joana era mesmo uma menina como ela, mesmo que soubessem as duas da existência do tal adereço entre as pernas. Foi Ana quem primeiro começou a tratar Ju por Joana e Joana nunca mais reconheceu nenhum outro nome senão aquele apesar de todos os anos que passaram até que pudesse ser seu por direito.

Há medida que o tempo passava as meninas tornaram-se mulheres e os meninos homens e Joana ficou ali no meio, parada no tempo, sabendo aquilo que era mas não conseguindo encontrar aceitação no seio daquela gente para aquilo que queria ser. Quando fez 16 anos a avó chamou-a e deu-lhe uma pequena caixa onde tinha guardado todo o dinheiro que tinha conseguido poupar desde o nascimento de Joana. Disse-lhe que o seu tempo tinha chegado ao fim, que não iria durar muito mais, e pediu a Joana para se ir embora dali. Tinha medo do que lhe pudesse acontecer assim que ela não estivesse presente para lhe valer.

E assim Joana se foi daquela pequena aldeia onde vivíamos. Partiu para a cidade e mais tarde soubemos que tinha viajado para o Brasil. Só Ana lhe sentiu a falta penso... pelo menos só Ana me disse que sentia a falta daquela menina tão carinhosa, tão sensível, tão prestável e amiga de todos.

Um dia passados muitos anos Joana voltou à aldeia mas ninguém a reconheceu. Veio ter comigo e disse-me que se lembrava tão bem de mim, que me preocupara sempre por ela. Demorei algum tempo a rever naquela bela mulher o menino enfezado que dali tinha partido. Explicou-me que no Brasil estavam muito à frente nas cirurgias de mudança de sexo que não sendo um caminho fácil era já possível e com resultados muito positivos. Congratulei-a por ter perseverado nesse seu caminho, abracei-a mesmo, sentindo já um enorme carinho pela mulher feita em que Joana se tinha tornado.

Perguntou-me por Ana, queria revê-la e saber se ainda se lembraria dela. Eu sabia que Ana nunca tinha casado, que era uma miúda terrivelmente introspectiva, vivia consigo e para si e raros conheceriam o que lhe passava na alma. Lá lhe indiquei o caminho e vi-a abalar tão segura de si, tão cheia de confiança naquilo que agora tinha para dar. Querida Joana, como me arrependo hoje... devia ter pegado em ti e na Ana e devíamos ter saído logo dali!

Ana reconheceu Joana, logo assim que a viu vir. Havia qualquer coisa a ligar essas duas almas, tão transcendental como a vida e o amor. Teve com ela uma conversa que não tinha tido com mais ninguém, talvez estivesse à espera de Joana para descarregar esse fardo que a tinha trazido tão pesada e presa em si mesma. Ana explicou a Joana que um dia já depois dela ter abalado descobriu que não gostava de rapazes. Não suportava que lhe tocassem e muito menos que a beijassem! Dava-lhe asco o seu cheiro a terra, a suor e a álcool. De tal forma que da única vez que um rapaz a tinha tentado beijar Ana tinha soçobrado acometida por fortíssimas náuseas que assustaram o miúdo de tal forma que nunca mais nenhum rapaz quis tentar alguma coisa com ela. Mas Ana sabia que não era frígida, apesar de ser essa a sua fama na aldeia. Só ela sabia os sonhos que povoavam as noites longas e solitárias. Sonhos estranhos esses... feitos de mulheres que a agarravam e a beijavam e aí não havia lugar a pânico de espécie alguma. Ana confessou a Joana que sentia que gostava de mulheres, que seria esse o caminho, não por opção mas porque era esse o seu destino.

Mas sentia-se confusa em relação a Joana, porque a idade da razão lhe tinha trazido a consciência do problema da amiga. "Eu sempre te vi como menina, sempre te tratei como menina, sempre te quis, sempre gostei de ti assim..." E Joana explicou-lhe que nos anos volvidos tinha encetado esse longo e doloroso percurso físico que a tinha levado à transformação e reordenação de alguns dos seus órgãos exteriores e interiores. Ao longo dos anos, pouco a pouco, Joana viu emergir em si aquilo que a definia como mulher. E sentia-se mulher, mesmo face ao egoísmo dalgumas útero-fundamentalistas que lhe negavam o direito de se expressar enquanto mulher pelo simples facto de não puder vir a conceber. Sentia-se plena mesmo assim, mesmo sabendo que nunca poderia albergar vida em si. E para mim esse argumento era maldade pura... igual a alguém que insultasse um cego por não poder ver!

O caso é que Ana se sentiu atraída por Joana, já antes se tinha sentido, mas não assim, dessa forma tão bruta e latejante. Sentiu um desejo tão profundo por essa mulher, um sentimento tão desesperante de querer nela submergir para sempre. Joana confessou-lhe que também nunca a esquecera, que viera do outro lado do oceano para a procurar e para saber se ela era como as outras ou se a aceitaria tal como era. Estava até disposta a que fossem só amigas, desde que reatassem esse laço que as tinha unido em crianças.

Ana aceitou Joana, acolheu-a em si, abraçou-a, beijou-a, lambeu-a, comeu-a... e foi magnífico! Um momento único, feito de Amor, Desejo, Vontade e Sexo. Tudo junto por uma vez só, rodopiando, subindo, explodindo em estrelas de mil cores por cima duma, por cima doutra, renascendo as duas nesse momento, nesse dia em que se amaram e se juraram Amor eterno, para sempre!

Queria parar aqui a história, queria deixar as minhas memórias congelar neste preciso momento em que as duas mulheres se amaram como nunca e se sentiram rainhas do mundo e donas duma sabedoria divina. Mas logo após, pouco depois, não sei se foram poucos meses ou muitos, a história ficou manchada de sangue e tristeza. Porque os irmãos de Ana não se conformaram, porque espalharam pela aldeia que Joana era maluca, uma bruxa que tinha sido enviada pelo demónio para destruir a irmã e toda a aldeia. Porque as gentes do campo são crentes no básico e porque se unem em matilhas raivosas para nelas esgotarem as frustrações dos seus dias plenos de mesquinhez e futilidades. Porque o Amor e a Vida não significam nada para essas matilhas que se viram contra os seus! Porque Ana e Joana não previram que a Raiva fervia na cabeça e na pele dessas gentes e porque eu própria não as tirei daquele antro antes que os outros as encontrassem e as apedrejassem até à morte. Ana ainda viu Joana desfalecer com a força do embate da pedra bicuda na sua nuca. Ainda tentou estancar o sangue que jorrava do corpo da sua amada, mas sem dedos nem mãos suficientes para travar a vida esvaindo-se em soluços quentes e vermelhos. Ana ainda viu como a turba ululante se atirou a Joana e a retirou dos seus braços, pontapeando e socando o seu corpo moribundo. Depois foi a vez dela mas nesse momento já nada sentia, toda a sua dor se tinha ido juntamente com o ultimo suspiro da mulher que amava. As pedras embatiam-lhe na pele mas por dentro já se congratulava por sentir Joana cada vez mais perto, lá dentro dessa luz que a chamava, lá onde as duas poderiam finalmente viver o Amor que aqui lhes tinha sido negado.

Porque as minhas duas meninas ainda estão Vivas, tenho a certeza disso. Sinto a luz das suas estrelas, sinto-as por perto nestas noites quentes de Verão em que recordo os seus sorrisos e o brilho dos seus olhos nos breves momentos de felicidade que viveram juntas. Tenho pena que a sua Luz não brilhe mais intensamente, para dentro da cabeça daqueles que acham que tudo sabem, tudo podem, tudo mandam!

Dar a cara

segunda-feira, junho 22



Fomos à Marcha do Orgulho 2009 e apesar do calor que se fazia sentir em Lisboa, estava um ambiente que só visto!

Apareceu muita gente, muito mais do que eu estava à espera. E muitas mulheres, jovens, bonitas, assertivas e confiantes! Muitas vieram de fora de Lisboa, comentavam que em qualquer outro sítio não poderia ter sido assim. Menos mal, por algum lado temos que começar e se é em Lisboa que temos que mostrar a força dos nossos números, então que seja!

Estamos nos milhares, qualquer dia chegaremos ao milhão num movimento que já é imparável!

A esta não podemos faltar!

quarta-feira, junho 17



Tenho andado ausente por variadíssimos motivos pessoais e profissionais mas não posso deixar de apelar a tod@s que façam um esforço para estarem presentes na 10ª Marcha do Orgulho LGBT em Lisboa, já no próximo sábado. Acho, sinto, que o ano de 2008 foi um ano de viragem na causa dos direitos LGBT e acho, sinto, que daqui para a frente a nossa situação irá sem dúvida melhorar. Mas isso só se conseguirá à custa de tod@s os que se juntarem a nós na reivindicação dos nossos direitos. Tod@s, gays ou straights, teremos que demonstrar à sociedade civil que não pode continuar a menosprezar cerca de 10% (ou mais) dos seus membros. Queremos justiça e igualdade no tratamento das nossas situações conjugais e familiares! Queremos ser plenamente reconhecid@s como casais pela sociedade e pela lei!

Vamos à Marcha do Orgulho LGBT, por nós e por tod@s aqueles que ainda não têm coragem de dar a cara por medo e por vergonha!

 

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