Memórias coloridas

quinta-feira, julho 3



O Verão tem destas coisas que nos faz soltar o pensamento tanto como a língua que por vezes percorre desenfreada e gulosa por memórias que nos torram e queimam os centros nevrálgicos que sabíamos que tínhamos e mais uns quantos que nunca imaginámos possuir. É verdade que tive uma juventude bem recheada de sensações e emoções, não me queixo de todas as seivas que por mim passaram e em mim escorreram, aliás hoje canto-as para que saibam da importância que tiveram em mim. A minha pueril sede de prazer transformou-se em fonte de letras e palavras que recriam outras vidas e outros tempos, alegres, despreocupados e despudorados também. Precisei de tudo isso para chegar onde estou hoje, à tranquilidade dos “entas” e da vida de casada com a mulher que amo.

Hoje acordei com os acordes daquela velhinha música do Juan Luis Guerra na cabeça, essa mesma de que todas se recordarão tão bem, do peixe que se deixa enfeitiçar pela sereia e se enfia na sua gruta feita aquário de cristal onde por momentos se deixa aprisionar para que ela possa tão somente desfrutar da alegria contagiante das borbulhas de amor que o peixinho tão delicadamente vai soprando na direcção do seu... talvez isso, não sei, mas esta música sempre me evocou imagens poderosas de estrondosos prazeres subaquáticos e para isso muito contribuiu o encontro que me sucedeu faz por esta altura uns dez anos... ou talvez mais que a memória tem destas particularidades ao manter a vivacidade das cores e a intensidade dos momentos independentemente da distância temporal que deles nos separa.

Foi com uma espanhola pois... já aqui confessei que fraquejo perante certas beldades latinas e esta tinha um fogo interior que não passava despercebido a ninguém, homem, mulher, ou até animal! Qué de pasión... ui! Essa noite não foi a primeira que nos vimos, ou por outra, talvez fosse a primeira vez que ela olhava para mim embora eu já seguisse o seu rastro há vários verões. Sabem aquelas mulheres que arrastam toda uma história atrás de si e que nos estonteiam pela intensidade com que num só olhar nos permitem vislumbrar a paixão que trazem dentro delas? Sabem aquelas mulheres que levam muitos à loucura e que conscientemente ainda nos fazem arrependermo-nos de todos os nossos amantes passados e futuros? É dessas que reza a história, dessas helenas de Tróia, que tão subtilmente nos subjugam e arrebatam e nos elevam aos píncaros ainda que apenas por brevíssimos momentos.

Nessa noite estava um calor daqueles espessos e pesados mas mesmo assim isso não me impediu de ir comemorar para o local do costume. Não me lembro ao certo ao que a comemoração se referia, mero pormenor que deixou de ter relevância após tudo o que me aconteceu. Fui com o grupo do costume e ela estava lá, nesse bar sito em terra indefinida onde como sempre deixámos sotaques e costumes amontoados à porta da saída. Assim despojada entrei e senti logo o olhar dela sobre mim, intenso e poderoso como uma mão firme pousada sobre o meu peito marcando um território prestes a ser ocupado. Há dias assim, em que uma invasão unilateral nos cega e nos tolhe a vontade de reacção, deixando-nos à beira do altar prestes a sacrificarmo-nos às deusas do amor e do prazer.

Durante horas bebi e dancei e em todos os momentos nunca deixei de a sentir ali, obsessiva e predadora, observando-me de todos os ângulos, empurrando-me para um canto de onde eu sabia que não iria nem quereria conseguir escapulir-me. Falou-me ao ouvido, segredou-me palavras que me transportaram para outros tempos e eu ali fiquei enfeitiçada pelo fogo latino que cirandava à minha volta.

“Mi casa” fui, foi, algo que nunca tinha feito antes e nunca voltei a fazer depois mas como resistir-lhe se a minha vontade já se tinha colado à dela tanto como a pele dos nossos corpos suados? Foi então que ouvi e senti essa música de Juan Luis Guerra numa coreografia que imaginei ter sido criada só para mim... “mojjjjaaadaaaa em ti” rosnava a leoa enquanto se despia e me despia até ficarmos só as duas nuas “bajo la luna”.

Normalmente não gosto e não me deixo levar no que toca ao sexo, prefiro ser eu a marcar o ritmo e a definir até onde esticam os meus limites. Mas nessa noite de loucura a minha voz calou-se perante a potência da sua e foi tudo como ela quis que fosse. Assumi-me passiva sem nunca o ter sido e deixei as suas mãos experientes brincarem com o meu corpo e o meu sexo. Movimentando-se duma forma fascinantemente perversa encostou-me a uma parede e atou-me as mãos a uma espécie de tela preparada para o efeito. Semi-reclinada, de mãos atadas como se fora algum Cristo abandonado a uma sorte desconhecida fechei os olhos e entrei numa outra dimensão, puramente sensual e sensorial.

Ela continuava a invocar algum demónio em forma de peixe à medida que lenta mas firmemente me abria as pernas para que pudesse explorar a gruta aquário que tinha elegido como seu abrigo nesta noite de lua cheia. Em pequenos toques suaves me penetrou de tal forma que senti toda a sua forma dentro de mim, boca, olhos, nariz, cauda, barbatanas, escamas que levemente se roçavam agigantando a gruta viva de onde brotavam mil pequenas fontes de água límpida e salgada que ela impacientemente sorvia. Espantoso era a forma como o meu corpo se lhe rendia aumentando a intensidade com que as águas cediam à medida que a cadência das suas borbulhas turbilhões aumentavam dentro de mim. Já não eram as suas mãos, nem a sua boca, nem a sua língua mas sim verdadeiras e majestosas ondas que se formavam à medida que a gruta atingia o seu auge e eu me sentia prestes a explodir sem me puder conter. E não me contive e foi como se uma enorme barragem se quebrasse pela força dos espasmos primordiais que me percorreram lançando jactos orquestrados com mestria por essa mulher libertadora que me quis mergulhar num mar imenso de infindáveis prazeres.

Talvez eu seja uma sortuda, bafejada pela sorte e pelo amor, mas neste início de verão escaldante é com imenso agrado que recordo todos estes pequenos detalhes que dão vida e cor à minha extensa manta de memórias coloridas.

17 comentários:

Anónimo disse...

Maravilhoso como eu viajo nos seus textos.

Who?... Me?... disse...

Adorei o post. Principalmente porque na passada segunda feira, alguém com quem eu não estava há 10 anos, que também vive fora do pais e com quem tinha sentido o mesmo tipo de sensações voltou a aparecer na minha vida...
E eu voltei a sentir exactamente as mesmas sensações, ou talvez as tenha sentido ainda mais...
Escandaloso, voltar a passar por isto... Estou ansiosa por que passem mais 10 anos... E que ainda tenhamos a mesma quimica, o mesmo encaixe...
PS- Isto vem provar que realmente o preconceito é uma estupidez. Sentimos as mesmas coisas, da mesma forma. Só que eu com um homem e a Miranda com uma mulher.

Anónimo disse...

wow estou completamente rendida...
Estou a adorar ler os teus posts... são absorventes e maravilhosos... nem sei que dizer. beijo*

Unknown disse...

Mais um conto arrebatador. As suas experiências davam um livro que provavelmente teria bastante sucesso.

tagareladora disse...

Ufa... fantástico, inebriante.

Anónimo disse...

Adorei, adorei, adorei!
Devorei conto.
Texto que envolve, entusiasma e se entranha por dentro da pele!
Vengan mas... con salero!

Anónimo disse...

lindo!!
quem dera ter inicios de verao desses sempre... ha gente com sorte! aiii
*suspiro*
realmente estes posts sao do melhor... keep going ;)

Anónimo disse...

Estou sem palavras...sou fã do blog e agora sua fã!Pelo menos no que depender destes textos, temos Verão escaldante!

Anónimo disse...

Já era fã do blogue, agora com estes posts da Miranda... Fascinantes... Parabéns pelo modo único como escreve, acho que deveria pensar em ser escritora de romances L...!

rv disse...

parabéns,os textos são tão bem escritos q de repente deixam de ser textos e passamos a personagens ou meros observadores da acção...

Alice disse...

Estão sendo deliciosos estes contos, tão sensuais e envolventes.

Anónimo disse...

Muito bonito este post. Parabéns pela maneira como escreve.

????? disse...

Maravilhoso o que você escreve... é um prazer imensurável ler seus escritos...
Parabéns!

Mar da Lua disse...

Passem lá pelo meu cantinho! Tenho um convite para vos fazer!

Catarina disse...

Adoro ler o que escreves ;)

Αμαζόνες :P Susana disse...

estou a ler todos os posts :P realmente algo maravilhoso nao podia deixar de comentar, adoro a escrita, a mensagem, mto bem conseguido.

d disse...
Este comentário foi removido pelo autor.