A idade da inocência

quarta-feira, janeiro 28



Após o anúncio já esperado que o casamento homossexual voltará a estar na agenda política do partido que constituirá o próximo governo (há que ter esperança!), sei que iremos voltar ao velho tema da "opção" versus "orientação" sexual e como tal deixo já aqui a minha contribuição.

Tenho pena que os outros não saibam o que é nascer-se assim, quem é homem não sabe o que é ser mulher, quem é mulher não sabe o que é ser homem e quem é heterossexual não sabe o que é ser homossexual. Um dia um rapaz vê uma menina e aquilo mexe com ele e a partir daí identifica-se com a vasta maioria sem mais quês nem porquês.

Um dia uma menina vê outra menina, alunas ainda da primária num tempo longínquo em que o sexo era um tema tabu, e aquilo mexe com ela. Nem dez anos ainda feitos e já sabe que a Teté ilumina os seus dias, tal como o sol num dia quente de verão. Não vê televisão, nem sabe ainda o que isso é, as leituras resumem-se àquilo que os professores mandam ler, sabe por observação que os casais se compõem de um pai e de uma mãe e no entanto ela tem a mente fixada na Teté. Acha os rapazes feios, maus e sujos. Não sabem falar, cospem-lhe para cima e andam sempre aos pontapés e aos murros. Com a Teté é tudo diferente. Ela sorri-lhe duma forma tão carinhosa e ternurenta. Carente de mãe, já falecida, a menina aprecia essa parca bondade que lhe é dispensada e declara Teté a melhor pessoa do mundo, para além da mais bonita e simpática.

Procura o contacto físico com ela, nada parece real até ser tocado e sentido na pele. As mãos que se dão, os olhares que se trocam, os segredos mais íntimos sussurrados ao ouvido, é o começo duma relação diferente de todas as outras, sem nome ainda porque uma criança que nem dez anos tem não consegue definir algo tão complexo como a atracção sexual entre dois seres humanos.

Os dias passam sem pressas, aparentemente todos iguais mas sempre diferentes porque partilhados com a Teté e só quem vive uma tamanha amizade sabe a relevância que os pequenos gestos e olhares podem ter na vida duma criança. Um dia Teté diz-lhe que quer dar-lhe um beijo, parece uma coisa tão banal, afinal todos os dias se beijam quando se encontram e ao final do dia quando se despedem uma da outra. Mas não, o beijo que ela queria não era desses inocentes em que os seus lábios se encostam às suas bochechas redondas e afogueadas. Teté queria beijá-la na boca como já tinha visto adultos fazerem entre si. E esse pedido, esse desejo vindo duma sexualidade prestes a despertar, consumiu-a dias e dias seguidos. Se por um lado ela também queria beijar Teté dessa forma por outro tinha medo de estar a entrar num quarto proibido, até porque os beijos na boca não eram algo usual de se ver naquele tempo. Não sabendo ainda os caminhos que se abririam para si temia o desconhecido. Nem lhe passava pela cabeça que os tormentos seriam iguais se tivesse sido o Pedro a pedir-lhe um beijo em vez da Teté. Era o beijo em si que a inquietava, e não o facto da Teté ser uma menina tal como ela.

Passado uma semana esconderam-se na casa de banho para faltarem à aula de português e fugiram para o recreio quando já os outros meninos se encontravam a conjugar verbos sem saber o impacto que aquele momento teria na vida daquelas duas meninas. Foi ali mesmo, por baixo do parapeito da sala de aula de onde escorregavam pretéritos imperfeitos e mais que perfeitos, que ela e Teté se aninharam e muito ao de leve deixaram as suas bocas tocarem-se durante uns segundos que lhes pareceram uma eternidade. Como é que um simples gesto, um toque tão inocente, marca e define para sempre a vida de duas crianças que se descobrem homossexuais sem saberem ainda as dificuldades e sacrifícios que essa "escolha" lhes irá acarretar ao longo da vida?

Não "escolhemos" ser homossexuais, podemos é escolher não viver essa nossa característica na sua plenitude. Podemos escolher casar para que ninguém desconfie dos olhares lascivos que deitamos às irmãs dos nossos namorados. Podemos escolher ser mães porque temos essa vontade e esse direito. Mas bem lá no fundo e independentemente de quem esteja a dormir connosco na cama, não podemos apagar da memória nem dos sonhos essa tarde fresca de primavera em que demos o nosso primeiro beijo.

Devia ser simples para qualquer outro ser humano compreender que isto não se explica com meros "porque é assim que deve ser". Nós entendemos bem esse "é assim que deve ser", mas isso não ajuda o que sentimos em relação às pessoas com as quais nos cruzamos ao longo da vida. Ninguém sabe porque é homossexual, ninguém consegue explicar racionalmente aquilo que sente. Sei que a Igreja irá tentar pôr a homossexualidade ao mesmo nível da pedofilia e da bestialidade e que isso irá entristecer e humilhar milhares de pessoas que se esforçam todos os dias para serem seres humanos dignos, respeitadores e respeitados no seio da sua comunidade.

As batalhas que ainda nos faltam travar são imensas! Só espero que tod@s tenham capacidade e coragem para enfrentar as tantas barreiras que ainda nos faltam transpor até sermos vistos e tratados como membros plenos das sociedades que nos acolhem. E espero tanto que um dia toda a humanidade compreenda que ninguém "escolhe" ser homossexual, é algo que está tão enraizado em nós que nem ameaças, insultos, ou tratamentos de choque conseguiram erradicar. Não desistam nunca de lutar pela vossa felicidade, pelo vosso direito de viverem uma vida ao lado da pessoa que amam, estou a torcer por tod@s nós!

11 comentários:

Tiger! disse...

Adorei o texto! Ainda não beijei nenhum rapaz, mas identifico-me bastante com o que foi escrito.

Abraço!

Anónimo disse...

Escolher mais palavras para quê?quando posso simplesmente dizer: Excelente post!
Ainda acredito que as "coisas" a que chamamos mentalidades pobres possam mudar...
Vamos torcer!!!

Anónimo disse...

excelente texto! parabens...;)

Hérika disse...

Fantástico, só quem sabe é quem vive e é realmente uma pena que quem não "vive" ainda não tem a evolução suficiente para ver a realidade diferente da sua e respeitar.

jc disse...

antes de entrarmos em histeria com as benesses socráticas, que muito provavelmente são apenas aliciamento ao voto rosa, eviamos ter atenção a isto:
http://ontheroadtosomewere.blogspot.com/2009/01/leia-nas-entrelinhas.html
e a mais isto:
http://jugular.blogs.sapo.pt/666257.html

Anónimo disse...

Está tudo dito neste post. Óptimo!
SC

Anónimo disse...

Lindo! Obrigada por pores em palavras o que nem sempre consigo dizer. Bj

Anónimo disse...

Vim conhecer seu espaço e simplesmente me encantei. Nada como ler textos bem escritos e com profundidade. Parabéns!

Anónimo disse...

Adorei o texto! Só tenho pena de a sociedade em que vivemos seja tão retrótoda e que não consiga evoluir ao ponto de não aceitar os outros tal como são...

Anónimo disse...

Lindo post....

Anónimo disse...

Eu acho bem os casamentos homossexuais e digo mais: deveriam ser permitidos todos os tipos de casamento possíveis e imagináveis, a saber: homem+mulher, homem+homem, mulher+mulher, homem+cão, mulher+gato, homem+macaco, mulher+cavalo, homem+burra... Lá diz a sabedoria popular e o seu ditado "Cada um é como cada qual". Agora se a igreja quer ou não abençoar essas uniões isso é lá com ela "cada uma é como cada qual", lá está outra vez a sabedoria popular...
Zé da Burra o Alentejano